ESTÓRIAS DE DIVÃ

1.
O prédio onde tenho o consultório é velho. Não decrépito, mas antigo: chão de mármore estalado e paredes de madeira com dez camadas de verniz, o senhor Alfredo atrás do balcão do hall de entrada, todos os dias das nove às cinco - leva-nos a correspondência, dá indicações aos nossos doentes perdidos (o dr. Carmo? é no terceiro, vira à direita ao sair do elevador), trata do condomínio e das plantas, toma um café a escaldar a meio da manhã e bebe um copo de leite dez minutos antes de ir embora à tarde sempre na cafetaria da Rosa, que fica logo a seguir à multiópticas. Diz- nos bom dia  e boa tarde todos os dias, uma piada sobre futebol ou sobre o tempo, um sorriso entre o treinado e o natural a que já nos habituamos a ter como certo. Tal como as salas envelhecidas, como a grade do elevador à moda antiga, e a  dona Alzira das limpezas. Habituámo-nos às pessoas e às coisas que nos preenchem os dias, na verdade, com muita mais emoção do que podemos pensar.
-bom dia Sofia, sexta feira cinzenta, oito e meia da manhã
-bom dia Nuno, os olhos azuis e o cabelo muito escorrido (não sei se natural se obra de secador) a embalarem a subida até ao segundo. A grade aberta, a saída atabalhoada de gabardinas de um inverno sem fim e pastas de papelada inútil a roçarem uma na outra sem qualquer segunda intenção, o perfume dela a  esvoaçar pelo corredor dos consultórios no movimento rítmico do cabelo. Sem mais palavras. Conhecemo-nos apenas à seis meses mas eu sei que ela pertence, como eu, ao grupo dos silenciosos. Silenciosos na vida, quero eu dizer. Eu não me estranho  - que mais um psi podia ser senão um silencioso? O que faço é ouvir, ouvir, ouvir. Sinto- me tantas vezes como um saco a transbordar de histórias, emoções, trapalhadas que não são minhas e não quero ter guardadas, mas no fundo é isso que as pessoas querem de nós - alguém que as ouça. Na grande maioria dos casos só isso basta - sermos sacos abafadores de dores e desamores, receptores de despejos das almas que logo se aquietam mal os transmitem para outros. Que raio de especialidade havias de escolher Nuno, sussurra -me a minha mãe ao ouvido mil vezes ao dia - um eco fictício daquele dia distante, em Aveiro, quando lhes desfiz os sonhos, sem grande preparação prévia, de terem um filho cirurgião.
Mas a Sofia, estranho - penso que uma pediatra não devia ser uma silenciosa. Mas ela é, definitivamente. Não é só por sermos parcos em palavras, é toda uma maneira de estar, de ser, que se foi colando a nós ou que já nasceu connosco. É um jeito de passar quase a levitar seja pelo corredor do hospital seja por um jantar de aniversário, de passar despercebido na vida. Nunca trocamos mais do que meia dúzia de palavras circunstanciais do calibre das desta manhã, mas ela a mim não me engana - alguma ciência e arte a especialidade esquisita havia de me dar! Podia apostar que mora sozinha e gosta de se deitar no sofá da sala a ler aos sábados , que a sua música preferida é o Kissing You do Romeu e Julieta, que não tem mais de um ou dois amigos  e que gosta de passear descalça na praia nos dias de outono.
 - bom dia Celeste
 - bom dia sôtor
A querida Celeste - podia juntá-la no rol lá de cima dos entes que envolvem os meus dias numa existência menos solitária.
 - Aqui está a folha de hoje - e depois numa torrente de palavras sem pontuação, os olhos castanhos com uma sombra azul céu - terá que almoçar em meia hora, não houve outro jeito: o  dr. simão só podia pela uma e um quarto e tem muito urgência e a dona Florinda  hoje só podia às duas e meia a menina dulce ligou a desmarcar ao fim da tarde e a dra. guida do Hospital ligou cedo a pedir um contacto seu vai querer café ou está naqueles dias da enxaqueca?

2.


Tirando o perfume da Sofia ter-me  ficado colado à pele, tudo parecia indiciar um fim de dia  igual ao seu começo  e ao fim de semana por vir : entediante.

A Celeste a desagendar-me a agenda ao gosto dos fregueses, as palavras ocas de um  paciente entupido em lorazepam, o sol finalmente a esgueirar-se para dentro da sala por uma das frinchinhas do estore de ripas de madeira comprado no IKEA e que ficava a matar com os meus diplomas na parede emoldurados pela minha mãe e uma estátua muito mal falsificada do Pensador de Rodin. 
- Tão vazio, tão triste.... não sei como trabalhas aqui doze horas por dia! fazia o meu irmão  António verdadeiramente desconsoladado pelo meu destino  - nem enriqueces nem te divertes no trabalho, pá que raio de vida! os caracóis meio loiros despenteados, estrategicamente a esconder as entradas, o sorriso franco dos olhos azuis e dos dentes branquinhos, sempre a fazer sucesso com as miúdas do bairro, com as da secundária e com as da faculdade. Eu limitava-me a fazer o meu sorriso, muito mais amarelo que o dele, e a encolher os ombros já de si encolhidos. Não podem ser irmãos! ouvia constantemente dos professores, dos amigos dos pais, dos amigos dos primos. Ouço, ainda agora, sempre que vamos jantar fora, que lhe abro a porta de casa numas visitas imprevistas ou do consultório numas esporádicas  crises  - arranja -me aí uma receita para eu dormir no avião que saio segunda de madrugada para Vancouver ou não atendas o telefone à Benedita que eu logo vou sair e disse que ia jantar contigo - que estavas a precisar! cada um tem a  vida que escolhe ficava eu a pensar, a girar na cadeira da esquerda para a direita. Se bem que o que na minha cabeça ecoava era: cada um tem a vida que merece Nuno, ou melhor: cada um tem  a vida que lhe está destinada a caber!
Quem disse que um psi não tem coisas mal resolvidas? quem disse que não se sofre? quem disse que temos as respostas todas? Passamos tanto tempo a cuidar das cabeças dos outros que nem queremos olhar para nós mesmos, dizia a minha colega Matilde entre baforadas de cigarros e goles de  cervejas mal tiradas, no café onde iamos a seguir ao expediente quando estagiávamos no hospital.
A imagem da Matilde, calças muito justas e botas de cano alto, um camisolão azul céu que a bata branca resguardara todo o dia, a serenidade das sardas na tela branquinha que era o seu rosto, a emoldurarem os olhos de mel fez -me sorrir.
- Ai agora ri-se sozinho? está bonito está... -  a Celeste a irromper pela porta (se bateu não dei por ela)  no preciso momento em que o sol desaparecia das frinchas do estore, o céu a ficar de chumbo e a chuva a estatelar-se no terraço das traseiras do prédio.
Não ouvi bem o que ela dizia. Só um nome a ecoar no meio do devaneio dos meus pensamentos - o perfume da Sofia, o meu irmão, a Matilde. Ana.
Um sobressalto que me avisava de algo poder alterar a ordem monocórdica da partitura dos meus dias, algo poder trazer ruído à minha existência silenciosa.


Ana, Ana Ana- para onde irão os sonhos sonhados que perdemos?
-Ana?
-Sim, Ana. Ó doutorzinho hoje não está nos seus dias! Ana Evelina Martins, é o nome que tenho aqui e que coloquei na ficha. Era a das seis mas a D. Florinda acabou por desmarcar mesmo e eu troquei-as - pausa para me piscar o olho, o cabelo espetadinho muito pintado de uma cor indefinida, os olhos transformados num lago azul  - assim pode sair mais cedo!

ANA EVELINA

Estou aqui porque me sinto sozinha. Já sei o que vai dizer: bem vinda ao clube mas é que às vezes é insuportável. A solidão, quero eu dizer.
Pode saber como isso é? Sentir-se completamente incompreendida, mal amada, sem um pingo de atenção. Podia ser só uma festa no cabelo, uma pergunta sincera de preocupação mas nada, do lado de lá não vem nada. Quero dizer com o lado de lá todos aqueles de quem espero algo, presumo que são todos os que amo. Sofro muito nessas alturas. Choro e sofro verdadeiramente. Depois? Depois passa, claro. Fui educada para andar para a frente, fui forçada a acreditar com toda a força no sol que brilha no dia seguinte. Eu entendo- me, sabe? Não pense que estou aqui porque não entendo. Entendo- me a mim e aos outros. Bem demais. Percebo coisas que preferia não perceber. Se calhar, olhe, devia era estar sentada aí desse lado, no seu lugar – não me leve a mal – mas às vezes acho mesmo que falhei uma vocação . Não diria psiquiatra que eu não me matava a estudar nem no liceu quanto mais dez anos de faculdade! mas psicóloga, astróloga, missionária. Está -se a rir? Nunca me levam a sério quando falo das minhas aspirações... já estou habituada.
Claro que tenho momentos de felicidade. Já lhe disse, não me tire logo a pinta de maluquinha depressiva -esse é o meu irmão Jorge. Às vezes invejo-o porque noto que a ele tudo se tolera, tudo se perdoa, tudo se dá e nada se pede. Acredito nisso, sabe? Uns de nós são dadores e outros receptores. Que mais podia ser uma alma com um sangue ORh- dador universal! Ria -se ria- se. Isso pode-se? Quero eu dizer, você pode rir-se dos pacientes? É que imagino o que não será com os verdadeiros maluquinhos... desculpe, estou outra vez a divagar. Você distrai- me das minhas incursões mais filosóficas – os meus amigos acham-me mimada, sabe mas não acho nada. Acho-me sensível - isso sim, admito. Não é uma qualidade como muito bem deve saber, nos nossos dias. Mas sou assim. Mimada acho que não, pelo contrario acho que não sou nada superficial – às vezes preferia ser mais. Penso muito sabe? Questiono, reflicto, pergunto, fico com as frases a fazer eco na minha cabeça e no meu coração ( um vidrinho de cheiro, diz a minha mãe)... pois talvez. Mas não fútil, valha- nos alguma coisa que nem tudo podia ser mau! Está se a rir outra vez... mas, vá lá, agora está a disfarçar – sou eu que sou engraçada, talvez. Ter presença de espírito! A minha directora está sempre a dizer que isso é muito importante e que eu tenho. Que crio empatia. Mais uma para o prato das qualidades... só lhe queria dizer isto em que tenho pensado – não acha que o ser humano é muito mais complexo do que se pensa e se faz crer? Eu acho. Acho que todos temos imensa coisa mal resolvida cá dentro e maneiras muito esquisitas de lidar com isso. Somos sinuosos, rebuscados, e não o digo no bom sentido. Intrigam- me os caminhos do sofrimento e das compensações. Intriga- me a capacidade de perdoar e os impulsos de vingança. Não digo em sentido épico, mas em sentido comezinho, sabe? Como, penso que sem querer mas com consciência, magoamos uns e amparamos outros e como isso pode ser uma maneira de nos vingarmos de infelicidades e frustrações, e como o fazemos entre amigos, entre família, entre amores. Pareço- lhe maluquinha? Acho que no fundo no fundo gostamos mais dos que sofrem do que dos que são felizes, percebe o que quero dizer?
Uma vez fui a uma astróloga que me disse logo – carneiro escorpião balança coitadinha de si! Um caranguejo no meio disso nasceu para sofrer. Acha que isto pode ser verdade? Não sei... por um lado aquelas palavras nunca me saíram da cabeça por outro bem sei que tenho uma certa tendência para me vitimizar um bocadinho. Dava -me muito bem com a minha avó sabe? Era peixes...

3.

A chuva continuou até à noite - o céu transformou-se numa nuvem escura que levou qualquer memória do sol do meio da tarde. As buzinas, misturadas com as gotas soltas dos limpa parabrisas e as luzes molhadas dos semáforos em cadências de paciência verde -laranja rápido-vermelho-verde-laranja... a voz dela a surgir na minha cabeça entre um pé no travão e outro na embraiagem.

Não sabia dizer se era bonita ou feia, era morena, sim, olhos escuros, vulgar até poderia ter dito o António. Ana, Ana e o nome dela a evocar uma paixão antiga, talvez a única verdadeira que vivi, a provocar um turbilhão de sentimentos completamente insuspeito dentro de mim. Uns jeans coçados, uns mocassins baixinhos e uma dessas coisas indizíveis  - um misto de t shirt, com camisa e top  - mas perfeitamente condizente, pelo menos assim me parecia na imagem meio endeusada que dela fiz. Não, vulgar não. Os olhos brilhavam quando falava, as unhas eram ruídas e entrelaçavam ritmadamente melenas de cabelo castanho que lhe caía solto até aos ombros. O riso entre o doce e o nervoso. 


Ligo o rádio para não ouvir as buzinas, as luzes húmidas da cidade a escorrerem pelo limpa parabrisas e o fim de dia a parecer-me tão só, tão desolador. Mais três semáforos e duas rotundas ainda  até casa. As vozes atabalhoadas do Alvim e seu convidado na Antena3 a soarem -me ao longe, misturadas com a voz dela a ecoar na minha cabeça. As frases banais, as palavras gastas (não fútil, não me considero fútil) mas algo  vistas, auto centradas, de quem não consegue ter uma visão do mundo maior que a sua própria pequena dimensão de menina mimada. Talvez vulgar, António, talvez. Não como a outra Ana, a da outra história de amor da minha vida.


Duas ruas e meia e o meu prédio sujo a surgir do lado esquerdo. O ruído das buzinas a ficar para segundo plano e a chuva a cair, agora das folhas verdes do arvoredo que remata o passeio. Desligo o rádio, tiro o cinto, carrego no comando da garagem , estaciono , tudo em piloto automático. Já só penso na cerveja gelada que me vai saber pela vida enquanto invento uma massa qualquer para jantar, com o que houver perdido na dispensa. 


A penumbra da casa a receber-me como um refúgio secreto. Um solteirão inventerado  - a voz do António - não te aborreces de ti próprio? dizia a rir-se, sem querer realmente ouvir a resposta, só a achar piada à própria piada.  Dispo a gabardina, volto a sentir o perfume da Sofia que ficou lá pendurado todo o dia, e tiro os sapatos. Abro a superbock, sem televisão. Miles Davis no mp3 ligado às colunas; duas luzes baixas acendidas na sala, os barulhos da rua a entrar pela janela semi aberta da lavandaria -uns risos, uns gritinhos de adolescentes, e os carros mais ao longe. Daqui a nada acabou. Vai ficar só o silêncio de um bairro triste da cidade. O jantar a ocupar-me por momentos os pensamentos, e a superbock a dar lugar a um copo de E.A tinto... os legumes no wok... o spaghetti a cozer... outro copo de vinho... os pensamentos a vaguear outra vez para Ana Evelina, para a outra Ana - que vida podiamos ter tido juntos? -  e para a vida medíocre que, afinal, me dou conta que levo. Autómatos. A retirar pequenos prazeres dentro dos limites que nos são impostos. A tentar viver em vez de sobreviver. O brilho desses olhos já esquecidos a ocuparem o lugar ao meu lado na mesa da cozinha - individual castanho, prato fundo, colher e garfo e a garrafa de EA a acompanhar tão bem com os sabores da pasta  - cogumelos, courgette, pimento vemelho. 


Não sei quantos copos bebi, embalado pelo Miles e pelos meus próprios pensamentos.

Adormeci no sofá, embriagado pela mistura fatal do vinho tinto e de imagens de duas Anas que de repente eram só uma, de dois tempos que eram um contínuo sem datas e de uma vida que afinal encerrava mil vidas em si.



A MINHA HISTÓRIA DE AMOR

A minha história com a Ana, para todos os efeitos, nunca existiu.  É assim que a percebo, hoje, quase vinte anos passados desse tempo. Esse tempo era o tempo de todas as promessas. De todas as possibilidades - cheio de risos, de planos concretizáveis porque pouco ambiciosos, do imediato, dos prazeres simples.  Os 20 anos. 

A garganta aperta-se sempre, num sufoco involuntário que vem do coração e me faz sofrer por um momento. Depois faz-me rever aqueles dias, aqueles rostos e digo para mim próprio que as memórias boas não são mais do que reservas de ouro que nos ajudam a levar a vida para a frente nos momentos de crise. Repito esta frase muitas vezes aos meus doentes - amores mal resolvidos, vidas que se viraram de pernas para o ar, sempre que o passado nos parece o lugar melhor onde já estivemos ( e não parece sempre?) e depois dou comigo a esbarrar nele tantos dias e a refugiar-me nele tantas noites. Tu desde a faculdade que não tens vida própria pois não Nuninho? - o António sempre acutilante. Sempre a forçar-me a ver um Nuno que eu não quero acreditar que sou. Sempre a destapar os meus medos, as minhas inseguranças, sem pudor.


A verdade é que relembro a Ana, todos os outros e aqueles dias quase como se fossem uma outra vida.

A  vida por capítulos - não será a de todos nós, hoje em dia? - pessoas e lugares que já não habitam no meu mundo. Eu próprio sou quase outro - pouco sobrou daquele Nuno de então.

Tínhamos a vida toda à frente. Tínhamos aquela arrogância de quem achava que estava no topo da montanha - os olhos brilhantes, os cabelos um pouco crescidos, a pele quase sempre morena e muito poucas rugas a aparecer. Os sorrisos branquinhos apesar dos muitos cigarros.  A faculdade, os exames e as aulas práticas, as festas, os livros os filmes e as músicas das nossas vidas, os jantares, a praia e os planos para o fim de semana  ocupavam-nos os pensamentos. Muitos cigarros e algum álcool. Os amores desfeitos. Todos tínhamos já passado por momentos mais ou menos dolorosos com o sexo oposto e encontramo-nos, por um acaso, nessa encruzilhada que era uma  espécie de limbo em que sentíamos a vida suspensa. Nunca mais na vida tive essa sensação.


Estávamos juntos a toda a hora - em casa uns dos outros a estudar, nos carros uns dos outros em trânsito sempre para qualquer plano fantástico. Joana Ricardo Jorge Francisco Maria Miguel Nuno Ana. 

Não me lembro como foi ou de onde ela apareceu. Foi aparecendo e a verdade é que o grupo se foi formando a partir daí. Não me lembro quando o meu coração começou a estremecer quando esperava por ela no carro e antecipava a entrada do seu perfume a invadir tudo - casacos, livros, cds e maços de cigarros. Nem me lembro de perder muito tempo a pensar nisso. Sem conseguir dizer bem como fomos construindo um "nós" que era feito de uma dança doce em bicos de pés - olhares, risos, telefonemas parvos.  liguei só para ver se atendias desliga lá isso e deixa-me dormir. Conversas sérias, silêncios descomprometidos. Sempre juntos. conheces k´s choice? Sempre lado a lado. veste a minha camisola que estás a tremer de frio. Jantares, acampamentos, tardes de estudo, passagens de ano.  the winners, é o nome da música.  Aconchegámos-nos um ao outro sem medos. Devagar. Sem perguntas, sem cobranças. Aparentemente chegava  - tanto partilhávamos histórias de amores desfeitos, como dançávamos agarradinhos. 

 És o meu melhor amigo, disse ela uma vez. Eu não disse nada. Um nó na garganta. Não sabia o que ela era. Não lhe sabia dizer por palavras o que ela era para mim. Achei, na altura, que podíamos passar a vida toda naquilo. Não podíamos, claro. E , num vendaval pequeno que se levantou - num final de verão frio  - tudo mudou. Devagarinho, o grupo dispersou e a vida precipitou-se nessa torrente de acontecimentos que nos leva para sempre a leveza da juventude  - uns tinham começado a trabalhar, outros foram fazer pós graduações para fora, eu embrenhado na especialidade. A minha Ana embrenhada num qualquer novo amor. Passa-lhe, lembro-me de ter pensado. Ela vai e volta. Não voltou. As nossas vidas continuaram, claro, toldadas pela normalidade que o futuro nos reservava - é assim, a vida.


Só muito mais tarde descobri que a vida não devia ser assim e que a tinha perdido. E aí percebi que estava apaixonado por ela.


Hoje, tenho esses dias, esses anos, guardados  nesse lugar entre o cérebro e o coração que é onde ficam as memórias que magoam. Envoltas numa luz dourada que vem dos pôr do sol laranja partilhados na praia e dos amanheceres metálicos em acampamentos junto ao rio, que vem dos holofotes feéricos de discotecas cheias e vazias e dos neons gastos das festas de arromba organizadas em pubs duvidosos. Vem, sobretudo, de uma luz interior que tínhamos quando estávamos juntos. 


Foi o melhor tempo da minha vida e nem isso tive, ao menos, coragem de lhe dizer. Nem na altura nem depois. Nunca mais nos vimos, é verdade. Uma ou outra vez nos dois três anos seguintes e depois ia sabendo dela pelos outros com quem ainda fui estando. Estava longe - bruxelas, paris, depois bruxelas outra vez. A minha paixão perdida a emergir em mim de forma proporcional à certeza de que para ela eu não era mais do que um episódio, talvez especial, mas passageiro. Talvez o António tivesse razão  - resguardo-me numa aura de solidão  que não é mais do que cobardia. Mas sentia que assim estava bem - estava a salvo do escárnio da vida. Ir a jogo custa muito - pode-se perder e isso dói. O que eu não sabia é que se podia perder sem apostar. Sem querer saber. Que a vida é muito mais refinada na malvadez do que o nosso cérebro, com a mania que é esperto.


Ontem fui obrigado a ir  limpar a tralha do meu quarto na casa de Aveiro - tem que ser Nuno, papeis e mais papeis, capas e caderninhos desde o liceu!  vamos pintar paredes, fazer estantes e reformular divisões - agora tem mesmo de ser, filho. A mãe em alta voz, a falar com o peixe do aquário enquanto eu grelhava uns camarões. Ouvi o que bastava. Que o António já tinha ido fazer a limpeza das coisas dele, que não podia adiar mais, que as obras começavam na segunda feira seguinte (invejo-lhe a força, o ânimo, a vontade de re-começar vezes sem conta, sem nada a demover, e tenho pena de na  lotaria da genética não me ter calhado um feitio mais igual ao dela).


Fui. Almoço, conversa de circunstância, os olhares de pena cruzados entre eles quando ouviam os meus monossílabos como resposta às perguntas do costume - e planos para as férias? e vais voltar a não dar um passeio? e quando nos trazes a tua namorada? não há namorada? hum? tens comido? tens um ar tão pálido, Nuno. Por estranho que até a mim me estivesse a parecer já só queria enfiar-me no quarto do fundo do corredor - no meu quarto da adolescência-  e afundar-me nas pilhas de dossiês e livros que forravam duas estantes. 


Sou um romântico. Sou um piegas. Aposto que o António despejou tudo directo para os sacos pretos do lixo - rápido e eficaz. Não percas tempo com o que não interessa, miúdo. Claro que não resisti a coscuvilhar a minha própria vida. A minha vida antiga. Sebentas, apontamentos, cadernos de rabiscos, mais sebentas. Capas de cds, bilhetes de cinema e de concertos e mais sebentas. Foi quando o papel caiu. Do meio das páginas desbotadas de um Sobotta fotocopiado.  Era uma carta dobradinha dentro de um envelope branco fechado. Sem data. Sem assinatura. Não sei quando terá sido ali posto. Não sei com que intuito.  Li-o de um folêgo e a seguir chorei. Ana - as lágrimas de um amor perdido que ainda não tinha chorado.


Talvez a vá procurar no facebook um dia destes.





A CARTA

Serás sempre o conforto do meu coração.



E um lugar desses é irrepetivel, insubstituivel. Serás sempre a imagem da ternura, dos tempos de ouro. Trarás sempre contigo a magia dos dias, o encanto de todos os momentos.

Serás sempre a promessa da vida sonhada. Um ombro. A infinita intimidade. A mais profunda entrega - aquele lugar entre o ombro e o pescoço onde, rendidos, sentimos poder encostar a cabeça e afogar todos os males.

Serás sempre um porto de abrigo e de partida. Serás sempre as possibilidades infinitas. E as impossibilidades que nos fazem sorrir e querer mais.

Estarás sempre em mim. Dançaremos sempre. Nunca nada entre nós é díspar ou antagónico. Sempre flui. Sempre encaixa. Não há angústias, só sorrisos porque só de promessas vive  a nossa história. Há um vento de vida que nos anima e nos faz sempre ir a passo, em frente, mas lado a lado.

E essa será, afinal, a nossa história de amor.Maior que os dias. Maior que a  vida.