08 maio 2012




LETRA B... de Barco à vela
O rapaz vivia no barco - praticamente.
Tinha uma casa, junto à praia, onde ficava algumas vezes – para matar saudades do seu amor, para descansar das longas viagens ou quando as noites de inverno se sucediam num céu escuro sem fim e o mar se tornava denso e impenetrável para o seu singelo barco à vela.
De resto, estava sempre no barco – em alto mar, atracado em portos próximos ou longínquos, balouçando ao largo de praias desertas, em pescarias junto às rochas.
O barco era branco e tinha o número dezasseis pintado a verde na proa – era o seu número da sorte. Tinha também o nome inscrito a azul, do lado esquerdo que é o lado do coração e este era o nome da dona do sorriso que pertencia ao seu.

O rapaz tinha os cabelos negros e ondulados e os olhos da cor dos mares por onde navegava – ora azuis de um transparente cristalino, ora de um verde profundo ora de um cinzento misterioso. Raramente perdiam a calma, os seus olhos.
A vida no barco era boa e o rapaz nunca se fartava – acordava cedo, com as gaivotas a darem-lhe os bons dias enquanto debicavam migalhas de pão que ele lhes deixava quando ia sacudir a toalha do jantar. Gostava de ver o sol nascer lá no horizonte, que era sempre uma ténue linha branca que separava o contínuo que, ali, era céu e mar.
O rapaz era um exímio velejador – sabia sempre de onde esperar o vento, a quantos nós o barco navegava, a profundidade das águas e fazer os cálculos para ancorar. Cuidava do seu barco como quem cuida de uma família – assegurava que o convés estivesse sempre limpo, os mastros e as velas em ótimo estado, que houvesse sempre água e reservas na cozinha.
Sempre que o tempo o permitia o rapaz gostava de pescar( e deliciava-se com os banquetes de sashimi que preparava!) e de mergulhar. Perdia-se nesse mundo líquido e submerso, silencioso e misterioso que era o fundo do mar - entre algas translúcidas, corais tecnicolor, cavalos e ouriços marinhos, nadava ao lado dos mais variados peixes: raias espalmadas, robalos brilhantes, aguçados peixe-espada e seus parentes menores peixe-agulha, estranhos peixe-relógio, inchados peixe-balão e encantava-se com esses seres meio plantas meio animais que são as anémonas, as esponjas e as medusas - conhecia-lhes de cor as cores e os nomes completos – alicia mirabillis, clavelina lepadiformis. Podia passar horas nestas expedições subaquáticas só interrompidas pelas vindas à tona para sorver oxigénio.
Assim deu a volta ao mundo três vezes e conheceu portos e vilas e praias e povos de todos os géneros e feitios - foi guardando na alma alguns inimigos e muitos amigos. Só o seu coração permanecia preso a um só nome, um só rosto, um só sorriso.
Por vezes tinha que enfrentar tempestades, ventos fortes e trovoadas - dias e dias em que parecia ser sempre noite, noites e noites de vigília tentando manter o seu barco à tona ou leva-lo a bom porto. Às vezes tinha medo, às vezes perdia o norte e até a calma. Mas nunca a esperança. Fechava os olhos com força e via o sorriso do seu amor e aí tinha a certeza que tudo iria conseguir superar e que, como tão bem se sabe, depois da tempestade logo viria a bonança dos dias quietos e das brisas suaves.
Gostavas de ser marinheiro, meu rapazinho? – perguntou-lhe ela numa tarde de fim de verão – o mar quieto na praia, os veleiros ao fundo, alinhados numa desordem quase geométrica, as velas num bailado tonto–levar uma vida embarcadiça e viver num mundo de água, longe de mim?
Ele sorriu-lhe: estarias sempre comigo!
E como se chamaria esse teu barco à vela, marinheiro?
Mariana - respondeu-lhe o rapaz mesmo antes de se atirar, com um mergulho estrondoso, naquele mar imenso.
Ela, claro, foi atrás.

27 dezembro 2010

CARTA À MÃE NATAL



Anteontem foi Natal. Um Natal diferente - mas não o serão todos?
Umas vezes acontecem umas coisas, outras vezes aparecem outras. Umas vezes estávamos todos, outras faltava alguém. Umas vezes ficávamos outras íamos. Umas vezes só havia pensamentos para os presentes e as rabanadas outras não. já passamos 32 natais juntas por isso é normal que por eles já tenham passado muitas coisas - boas e más.

Anteontem foi natal. E, como sempre, o natal  é teu.
Como li, num destes pequenos mundos que se descobrem neste universo da blogosfera ( e que às vezes nos fazem sentir em casa!) nunca o natal, ao teu lado, foi um acaso ou um frete: sempre um motivo. sempre celebração.  apesar dos pesares, sempre magia - a tua magia.
Aquela que tu espalhas à custa de algum sacrifício, alguma dor e muitas horas roubadas ao sono e à preguiça. aquela que nunca saberemos agradecer o suficiente. porque sempre a demos como adquirida. porque não sabemos existir ao teu lado de outra maneira.
Talvez ta retribua ao fazê- la, também, ao meu pequeno - sem pedir nada em troca, sem perder o sorriso e o brilho no olhar apesar dos músculos doridos e do coração cansado.

És sempre tu que nos fazes sentir em casa - e que fazes com que a Casa seja a nossa - re-inventado entradas e centros de mesa. acendendo velas e luzes veladas. aquecendo o ar frio com lume e com açúcar. revelando sorrisos com combinações de chocolates e poemas. sempre presentes perfeitos, embrulhados em palavras de ternura - nada é cru, falso ou desleixado. nada ao acaso -  sempre um adereço a espreitar numa  cómoda, num pratinho com bombons, num presépio inesperado. um conjunto de anjinhos a dar as boas vindas. sempre a delicadeza, sempre o pormenor, a receber-nos com toda dedicação, não deixando que NADA falte - afinal, como vives a vida.

Para mais nada que sirva haver internet e blogs e email e papeis e lápis e escrita servirá sempre para isto: conseguirmos aproximar-nos o mais possível do que queremos dizer. destrancar as palavras difíceis ( as mais doces são sempre  mais difíceis!) da gaveta enferrujada da alma, da vergonha de parecer lamechas, da falta de tempo, da falta de jeito, da garganta apertada ao começar a falar, da falta de momento certo e dizê-las. obrigada. sobretudo porque, ao contrário do que se possa dizer, as mães não são todas iguais - OBRIGADA por isso, por pertenceres às do grupo do amor-maior.

12 dezembro 2010

a vida

A vida é em socalcos. Cabe-nos saber desce-los e subi-los com sabedoria. Com cuidado. Cabe-nos saber estar em cima e em baixo sem medos. Sem perder o norte.

A vida é feita de desencontros. de perdas. de opções sobre o  que deixar  para trás. é feita de coisas que ficam por dizer, por fazer.

A vida é feita de bofetadas. de saltos que a meio se revelam sem para- quedas. a vida é feita de inversões de marcha.
A vida é feita de perdas. de saudades e arrependimentos.
A vida muitas vezes não faz sentido. não tem fio condutor. tem buracos negros.
A raiva, a angústia, o desespero, a inveja, a decepção. o muro ao fundo a mostrar-nos que o caminho foi o errado. o abismo a precipitar-se no nosso coração antes de percebermos onde devíamos ter parado.
a culpa, a dúvida, o vazio.

Apesar disto: O amor.
A paz de espírito. as certezas inabaláveis. a força. a aceitação e a tranquilidade. saber que estamos no caminho certo porque o vamos trilhando com o espírito livre.
dar sem esperar receber. ser maior que os medos - ter um sorriso a iluminar-nos o rosto mesmo nas noites sem estrelas. a vontade. o desejo sempre na alma.
Saber que aqueles de quem gostamos numa medida sem medida gostam  de nós ainda mais um bocadinho e estarão sempre connosco e nós com eles e  nada irá algum dia abalar esse amor e isso chegar para nos confortar em qualquer dia da nossa vida.

Só quem tem as almas maiores entende estas duas partes da vida. Só quem sabe sofrer sem se perder de si próprio chega mais longe no seu coração :Ser uma pessoa de bem. ser uma pessoa boa.

O conforto de as ter tido ao nosso lado, não importa onde, em que circunstância, por quanto tempo.  parar de questionar. saber que ali há um porto de abrigo eterno que nos protege de tudo.

Um olhar de profunda ternura, um sentimento que não precisa de nome, que não precisa de mais nada a suportá-lo senão o facto de algum dia, neste turbilhão infinito da Vida, nos termo encontrado, termos existido na vida uns dos outros, tornando- a infinitamente melhor.

01 dezembro 2010

Matilde


No dia em que eu nasci era domingo. A minha mãe já tinha nascido à precisamente trinta e dois anos. E o meu pai também.
No dia em que eu nasci o meu mano Gonçalo segurou a mão da minha mãe e deu lhe um beijinho antes de ela ir para o hospital como que a desejar boa sorte.

No dia em que eu nasci, contra  as previsões de um inverno chuvoso, o sol brilhou o dia todo - desde a hora em que eu saí do quentinho da barriga que me albergava à ,precisamente, nove meses.

No dia em que eu nasci muitos sorrisos brilharam quando leram a  sms com a boa nova, e alguns olhos ficaram húmidos de emoção - os meus quatro avós, os meus tios e tias ( tenho dois verdadeiros e cinco postiças!), a Leonor,o Samuel, a Inês e a Olivia (que são as minhas primas e primo),  o meu bisavô e muitos outros amigos e primos e tios sentiram aquelas borboletas no estômago que apertam um bocadinho a garganta e nos fazem sentir que tudo está bem quando o milagre acontece - o sentido da vida, como diria o meu pai que, no dia em que eu nasci, vinte e oito de novembro de dois mil e dez, olhou para a minha mãe e, por outras palavras, disse-lhe: amo-te.

21 outubro 2010

(re) encontros...



A propósito de várias coisas que acontecem à minha volta, com os meus, e claro, a propósito desta loucura que é a maternidade - tudo gira á volta do meu João, ultimamente! - penso em como é fácil nos aniquilarmos. Em como é fácil perdermo-nos pelo caminho, muitas vezes pelas melhores das causas, muitas vezes sem darmos conta, muitas vezes simplesmente porque estamos a viver a vida que nos é dada a viver. Sem fazermos um esforço por vivermos a que queremos viver.

 É fácil encostarmos o ombro em alguém que nos leve pela mão.

 É fácil ter um porto de abrigo que não nos obrigue a pensar, a questionar permanentemente e assim muitas vezes deixamos de fazer escolhas que realmente nos interessam.

 É fácil ir atrás dos objectivos de uma outra vida qualquer que não a nossa - é mais cómodo no final das contas - acatar os conselhos dos pais, focarmo-nos no bem estar supremo de um filho, seguir as vontades de um amor.

 É fácil vivermos enredados num sem fim de coisas importantíssimas que não tem importância nenhuma e esquecermos de nos deliciar com as nossas músicas de sempre, de perder uma tarde a ler um livro de poemas, de encontrar cada dia novas paixões - perdemos algures a capacidade com que nascemos para nos deslumbrarmos com cada mínima coisa deste  mundo - os olhos pasmos do meu bebé a olhar para cada coisa, cada cor, cada movimento prova-o!.

 Por mais que nos custe, ou que sejamos olhados de lado como uns aliens, ou pessoas a precisar de "um rumo" ou uma "ajudinha" de qualquer fármaco que nos aliene outra vez e nos ponha no " bom caminho" é bom que não tenhamos medo de nos lembrarmos de nós todos os dias! De virar a mesa se for preciso para nos voltarmos a encontrar: estar só quando mandava  a ordem social estar acompanhado, estar lá quando mandava o bom senso estar cá, arriscar quando mandava a prudência reflectir, mudar prioridades quando o nosso coração diz que sim!  

Relembrar os nossos sonhos, as nossas ambições, as nossas metas ou a falta delas, os nossos gostos, as nossas vontades, o nosso tempo, os nossos lugares - tudo  o que nos define como indivíduos e sem o que não podemos de forma  nenhuma ser felizes nem fazer felizes com quem  partilha a nossa vida.

LETRA A


A de amor ou de Ana.

Já viste que o teu nome se escreve de trás para a frente da mesma maneira que da frente para trás?
Isso tem um nome no mundo dos crescidos, mas aqui chama-se apenas magia - é um sinal de que o mundo é uma esfera e que, não importa onde se começa, vamos sempre passar pelos lugares que nos estão destinados e voltar ao ponto de partida.

Sem sobressaltos. Com a doçura que só tu sabes pôr nas coisas  - como a que pões na tarte de maçã, se bem que essa sai de um frasco branco de vidro com tampa de metal e tem uma cor dourada. Não importa se é aí que vais buscar a que pões na vida também - tens sorte porque, pelos vistos, o frasco nunca esvazia. Aliás parece que quanto mais gastas, mais açúcar amarelo há lá dentro !

Tu dirias com um sorriso matreiro: então não sabes que as bruxinhas da despensa estão sempre a encher os frascos que mais gostam? É o preço justo a pagar por as deixar viver lá, entre as prateleiras forradas a papel com maças e azevinhos desenhados, por mantermos a sua casa limpinha e abastecida e com um perfume que não se vende em nenhuma Sephora e cujo segredo da fórmula só eu sei - alquimista de dedos delicados que sou: alguma canela e açafrão da índia, apenas um pozinho de flor de sal e cominhos contagiado com um leve odor de tomilho e oregãos. Desculpa não poder revelar as quantidades nem um ou outro ingrediente secreto -  como os chocolates que guardo na prateleira da direita ou as tigelinhas de marmelada de setembro que ficam a acabar de secar nas prateleiras de cima de todo ou as açucenas que às vezes lá deixo em água antes de as pôr nos jarros e espalhar pela casa toda.
Elas gostam de morar ali - é secreto, quase sempre escurinho e acolhedor e em troca enchem-te um ou dois frascos de vidro  - um escolhem elas outro escolhes tu, tudo é negociação neste mundo de homens e bruxinhas!

Tu, Ana, claro, escolheste o das folhas de tília. Primeiro porque te agrada o som quando dizemos tília em voz alta - muito mais do que cidreira ou camomila. E depois porque é o preferido das tuas amigas quando as reúnes para o chá.

Não é às cinco porque não são inglesas e nem gostam de horários. É quando lhes apetece aparecer. Quando dizem o código secreto ( agora até basta pensarem nele, porque já são amigas há muito tempo!)  que abre as portas dos corações ligados uns aos outros por esse fio de prata delicado que se chama amizade e logo se encontram juntas a tomar chá. Na tua cozinha. Na mesinha contígua à despensa, claro - para que sintam esse perfume delicado e único que encanta as bruxinhas.

Podem ficar horas assim, a conversar de tudo e de nada, a contar estórias mil vezes recontadas e que nunca as cansam, nem a ti. Podem ficar em silêncio , o olhar perdido no papel das maças e azevinho que forra as prateleiras e de onde, de vez e quando, parece saltar um bruxinha mais coscuvilheira. Tu não te importas - sabes que és boa a dar-lhes colo e mimo e que precisas delas para que os teus dias sejam sempre de sol - mesmo quando lá fora chove como se fosse janeiro e o céu é de chumbo. Mesmo que às vezes os seus olhares sejam tristes. Mesmo que às vezes a chuva de janeiro passe para os vossos olhos.

No entanto a maioria das vezes o riso invade a cozinha e os rostos de todas e aí não há horas, nem minutos, nem idades, nem afazeres, nem obrigações! 

Até que o cuco que vive dentro do relógio da parede, por cima do fogão - ( é mais quentinho no inverno e sempre vai debicando do teu arroz malandro ou da sopa de abóbora!) anuncia que já é noite ( ou já é dia, depende!) e elas se vão embora.

Na mesinha junto da despensa ficam, em cima da toalha de linho branco que era da avó, as chávenas brancas com risquinha azul, onde lhes serves o chá de tília, vazias e, no prato de cristal transparente, duas ou três fatias de tarte de maçã  que tu cortas em pedacinhos pequeninos: mal te deites na tua cama de dossel, virão as bruxinhas mais gulosas saboreá-las  - são as suas preferidas, já se sabe, cobertinhas de açúcar amarelo !