21 outubro 2010

LETRA A


A de amor ou de Ana.

Já viste que o teu nome se escreve de trás para a frente da mesma maneira que da frente para trás?
Isso tem um nome no mundo dos crescidos, mas aqui chama-se apenas magia - é um sinal de que o mundo é uma esfera e que, não importa onde se começa, vamos sempre passar pelos lugares que nos estão destinados e voltar ao ponto de partida.

Sem sobressaltos. Com a doçura que só tu sabes pôr nas coisas  - como a que pões na tarte de maçã, se bem que essa sai de um frasco branco de vidro com tampa de metal e tem uma cor dourada. Não importa se é aí que vais buscar a que pões na vida também - tens sorte porque, pelos vistos, o frasco nunca esvazia. Aliás parece que quanto mais gastas, mais açúcar amarelo há lá dentro !

Tu dirias com um sorriso matreiro: então não sabes que as bruxinhas da despensa estão sempre a encher os frascos que mais gostam? É o preço justo a pagar por as deixar viver lá, entre as prateleiras forradas a papel com maças e azevinhos desenhados, por mantermos a sua casa limpinha e abastecida e com um perfume que não se vende em nenhuma Sephora e cujo segredo da fórmula só eu sei - alquimista de dedos delicados que sou: alguma canela e açafrão da índia, apenas um pozinho de flor de sal e cominhos contagiado com um leve odor de tomilho e oregãos. Desculpa não poder revelar as quantidades nem um ou outro ingrediente secreto -  como os chocolates que guardo na prateleira da direita ou as tigelinhas de marmelada de setembro que ficam a acabar de secar nas prateleiras de cima de todo ou as açucenas que às vezes lá deixo em água antes de as pôr nos jarros e espalhar pela casa toda.
Elas gostam de morar ali - é secreto, quase sempre escurinho e acolhedor e em troca enchem-te um ou dois frascos de vidro  - um escolhem elas outro escolhes tu, tudo é negociação neste mundo de homens e bruxinhas!

Tu, Ana, claro, escolheste o das folhas de tília. Primeiro porque te agrada o som quando dizemos tília em voz alta - muito mais do que cidreira ou camomila. E depois porque é o preferido das tuas amigas quando as reúnes para o chá.

Não é às cinco porque não são inglesas e nem gostam de horários. É quando lhes apetece aparecer. Quando dizem o código secreto ( agora até basta pensarem nele, porque já são amigas há muito tempo!)  que abre as portas dos corações ligados uns aos outros por esse fio de prata delicado que se chama amizade e logo se encontram juntas a tomar chá. Na tua cozinha. Na mesinha contígua à despensa, claro - para que sintam esse perfume delicado e único que encanta as bruxinhas.

Podem ficar horas assim, a conversar de tudo e de nada, a contar estórias mil vezes recontadas e que nunca as cansam, nem a ti. Podem ficar em silêncio , o olhar perdido no papel das maças e azevinho que forra as prateleiras e de onde, de vez e quando, parece saltar um bruxinha mais coscuvilheira. Tu não te importas - sabes que és boa a dar-lhes colo e mimo e que precisas delas para que os teus dias sejam sempre de sol - mesmo quando lá fora chove como se fosse janeiro e o céu é de chumbo. Mesmo que às vezes os seus olhares sejam tristes. Mesmo que às vezes a chuva de janeiro passe para os vossos olhos.

No entanto a maioria das vezes o riso invade a cozinha e os rostos de todas e aí não há horas, nem minutos, nem idades, nem afazeres, nem obrigações! 

Até que o cuco que vive dentro do relógio da parede, por cima do fogão - ( é mais quentinho no inverno e sempre vai debicando do teu arroz malandro ou da sopa de abóbora!) anuncia que já é noite ( ou já é dia, depende!) e elas se vão embora.

Na mesinha junto da despensa ficam, em cima da toalha de linho branco que era da avó, as chávenas brancas com risquinha azul, onde lhes serves o chá de tília, vazias e, no prato de cristal transparente, duas ou três fatias de tarte de maçã  que tu cortas em pedacinhos pequeninos: mal te deites na tua cama de dossel, virão as bruxinhas mais gulosas saboreá-las  - são as suas preferidas, já se sabe, cobertinhas de açúcar amarelo !

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