21 outubro 2010

LETRA I




A ilha era longe. E só de barco lá chegávamos. Nós e os outros que a escolhiam há muitos anos para passar as férias grandes.
Chegávamos sem falta no dia 1 de Agosto – cada um vindo de seu lado: uns dos países frios do norte, outros dos países húmidos do oriente, outros das terras quentes do sul e ainda havia os que vinham do oeste.

Na ilha, cada um tinha a sua casa, embora em sítios muito diferentes –  umas aninhadas nas dunas da Praia Grande,  outras mergulhadas nas ruelas brancas da Vila,  ou ainda outras empoleiradas nos planaltos do Monte Verde. Mas todas eram parecidas. Não se avistavam logo, quando chegávamos pelo mar. Só um olhar mais atento e mais de perto as descortinava –elementos de madeira ou cal branca, algum vidro e ferro. Confundiam-se com a paisagem: as casas da montanha tinham trepadeiras a forrar as suas paredes e telhados, e jardins selvagens a rodeá-las , as da Vila eram branquinhas como as ruas, apenas com portas de cores diferentes a demarca-las umas das outras – e era assim que eram conhecidas: Casa Azul, Casa Rosa, Casa  Verde e por aí fora. Tinham roseiras e azáleas em vasos nos páteos que se sucediam, formando um único cordão aromático A nossa era uma das casas da praia – e também essas, nos seus tons beje, malva e verde, passavam despercebidas no conjunto da areia fina e das plantas e flores  que cresciam nas dunas.
O pai dizia que as casas se aconchegavam ao seu local, de ano para ano, que iam ganhando as características do sítio onde moravam – como nós, quando vivemos muito tempo com alguém nos vamos tornando parecidos com essa pessoa.

A nossa casa ficava do lado este da Ilha, protegida do vento. Era baixa, de um só piso, e tinha um portão verde. Lá dentro tinha uma sala com uma cozinha onde a mãe nos fazia panquecas para o pequeno almoço e o pai cozinhava saladas de queijos e legumes para quando chegávamos da praia cheios de sol e de sal. Tinha o nosso quarto e o dos pais  e um alpendre atrás onde ficavam guardadas as bicicletas para as passeatas do fim de tarde – a luz já a escorrer, mansa, pelo céu  abaixo enquanto pedalávamos,  pássaros de bico amarelo a voar ao nosso lado em corridas amigáveis , e no fim,  os figos roubados às figueiras de ninguém a saberem-nos a  mel!
Todas as manhãs o ritual se repetia: mal o sol espreitava pelo linho branco de que eram feitas as cortinas nas  janelas  dos quartos sabíamos que era hora de vestir os fatos de banho e zarpar para a Praia Grande – dali a pouco chegariam todos os outros e havia risadas misturadas com gritos de brincadeiras e splachs de braçadas desajeitadas e mergulhos imprudentes naquele mar que era de um azul quase verde e tinha peixinhos a nadar connosco de um lado para o outro em cardumes dourados. Os nossos amigos chineses diziam que davam sorte – talvez por isso o mar se mantivesse tão transparente e límpido todos os anos!
De tarde podíamos voltar ou não – era conforme nos apetecia.
Às vezes ficávamos no jardim de trás a construir esconderijos  e a formar clubes secretos, ou a explorar os caminhos do Monte Verde e os seus habitantes  - lagartinhos, caracóis, azevinho, musgo e andorinhas, ou então íamos comer gelados para o coreto abandonado na praceta da Vila.

Quando anoitecia acendiam-se luzinhas por toda a ilha  - nas pracetas, nos caminhos e nos quintais e nos barcos e havia sempre uma música indefinida que devia ser a mistura das vozes, da brisa marítima e das violas que ecoavam daqui e dali.
Mas os nossos dias preferidos eram aqueles, raros, em que a ilha amanhecia encoberta de uma neblina que parecia algodão doce e a mãe dizia com um sorriso – hoje não há praia! Temos programa alternativo! 
Embora deixássemos escapar um suspirativo ohhhh, os nossos olhos não mentiam ( como não mentem nenhuns!) e neles via-se a secreta satisfação de quem antecipa no coração o que se passava a seguir – em algazarra boa íamos buscar umas mantas de algodão ao Baú das Coisas Velhas e aninhávamo-nos com ela, no banco de baloiço do terraço. Os outros iam chegando pelo dia fora, em bando ou aos pares, juntavam almofadões e cadeirinhas, uns traziam biscoitos de amêndoa, outros chocolate quente em termos que partilhavam na mesa grande da sala. A mãe fazia taças gigantes de iogurte com mel e partia fatias de pão que barrava com compota de abóbora com nozes para quando nos desse a fome e ali ficávamos – a ouvi-la contar histórias intermináveis porque o fim levava sempre ao principio de outra, a inventar letras e melodias que ensaiávamos em coro, a rodopiar em coreografias malucas.

Partíamos no último dia de Agosto – a pele tostada e os cabelos mais claros do sol, os sorrisos a saber a sal  e os olhos com o mar azul quase verde entranhado neles e no regresso contávamos as aventuras e desventuras do verão na ilha. Quando nos perguntavam – então e quando não está bom tempo, o que fazem? Encolhíamos os ombros num esgar a ensaiar uma tristeza – Nada! respondíamos, com os olhos a brilhar de felicidade.

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